21/08/2015

A Sala de Ruth II


(anterior)
A Sala de Ruth II
A Casa das Artes de Tavira

Há quem se sente e toque o piano ou simplesmente lhe experimente o som. Há quem se sente e folheie uma revista. Há quem todos os dias, já noite, lá entre, bebendo um copo, para ver um pouco do documentário do ídolo da sua juventude holandesa. Também já vi crianças espalhadas pelo chão a manusearem livrinhos. Há quem apenas se sente para contemplar melhor as obras expostas na Sala de Ruth. Eu vou lá para encontrar os amigos que já não são apenas estivais. Tudo isto, para além dos encontros e atividades calendarizadas.

Contemplar uma obra de arte é mais do que tropeçar na vertigem do rompimento do quotidiano. É dialogar com coisas, de aparente natureza inerte, mas que se revelam agentes ativos, atuantes e extraordinariamente permeáveis a quaisquer referentes. A contemplação das obras de arte visuais pode ser tão profunda, completa e gratificante quanto a audição de uma obra musical ou a leitura de um texto literário. A contemplação é um “aCto” distinto, que nos sugere e orienta para a experimentação de níveis diferenciados nas abordagens à vida. Se para isso estivermos disponíveis e, acima de tudo, se o desejarmos…
Há dois dias que acabei de ler os volumes da História das Perseguições Políticas e Religiosas de D. Fernando Garrido, acabando pelas desventuras nacionais entre constitucionalistas e absolutistas. Há dois serões que me sento na sala da Ruth a observar e a escrever mentalmente sobre as obras que tem colecionado. Quando tenho dúvidas é através delas que recebo as respostas.
Marcelino Vespeira (1925-2002) promete-nos um sensível esclarecimento de sensualidade e liberdade ‑ a gestação da semente que refulge, vibra e cresce, como núcleo da obra. A luz-pássaro-pomba que se liberta energicamente denuncia o momento da eclosão. O desfrute do colo feminino solto de uma qualquer árvore, pronto a reproduzir-se. Célula. Acto de amor no limite mais essencial do enigma, como Vespeira sempre desejou a vida.
Pouco se fala de amor na minha leitura estival. Mas nas entrelinhas adivinham-se grandes afetos, dignos de gente em extremos limites vitais e que faz grandes provas disso.
As cores fortes de Pedro Proença (1962) desfazem-se em nuvens de algodão de feira. Doces e pegajosas a lembrar narrativas da infância. Espessas, “matéricas” e fortes. Imprecisa é também a representação e a interação entre os diversos personagens, desenhando-se uma deambulação nos corredores da irracionalidade, entre a brincadeira, o ludismo e o drama.
Tão estranha como a história, descrita na minha leitura, das duas meninas que brincavam com um gatinho vestindo-o de trapos, restos dos seus vestidos. Assim brincavam com o animal doméstico. Infelizmente os trapos eram azuis e brancos. Alguém viu o gatito assim ataviado e as crianças alegres. Alguém as denunciou. Foram presas, assim como suas mães, e passaram cinco anos nos calabouços. Decorriam os anos de 1827-1832 na cidade da Guarda.
Imagino sobre uma tela um duelo de brincar entre João Vieira e João Manuel Vieira (1934 e 1962), pai e filho a pintarem à desgarrada. A paleta vibra e as formas encontram significâncias perigosas, arremedos que um e outro fazem. Punhais, pregos, triângulos vermelhos. Jogos perigosos mas fraternais. As cores vibrantes contrastam, discutem e assumem-se umas perante as outras. Nem uma letra, nem uma palavra. Mas a máscara existe, e a figura central, de olhos vazados, é azul…
D. Miguel perseguia o azul. Tudo o que refletisse a luz nesse comprimento de onda simbolizava o seu inimigo, portanto deveria ser perseguido, preso, torturado para que confessasse a infâmia. Eventualmente liquidado. Mulher portadora inocente de xaile azul a cobrir os ombros, seria por isso incomodada. Nem aqueles cujos olhos fossem de sua natureza azuis escapariam à fúria do rei usurpador. Não sei o que pensaria D. Miguel do céu ou do mar… Também custa acreditar que as fontes da minha leitura sejam verdadeiras… (Mas é geralmente pela inacreditável irracionalidade da brutalidade que os povos acabam por consentir que ela lhes invada e se acomode no quotidiano).
Na Sala de Ruth olhamos para cima do piano e defrontamo-nos com uma obra monocromática, com tom escuro, equivocamente situada entre o magenta, o violeta e o púrpura. O suporte é um segmento circular, com a base horizontal corresponde ao segmento da corda. As linhas são determinadas pelos altos-relevos que se sobrepõem e apenas se percecionam pela sombra que projetam no plano que lhes é inferior. Nesse suporte de forma invulgar, Manuel Batista (1936) evoca topografias de um imaginário racional, como se de maqueta territorial se tratasse, anfiteatros irregulares sobre praças de geometria regular. A geometria dos planos mais baixos contrapõe-se inesperadamente às arritmias das regiões superiores. Destes estranhos anfiteatros podemos antever o poder do mapeamento e da normalização que pode advir através do conhecimento com que nos guia. Mas sobre este mapa tridimensional podemos sobrepor diversos referentes e, seja ele qual for, a coerência será semelhante e o debate interior riquíssimo.
Existem livros que foram lidos há tempos que a memória esquece, mas que construíram o que somos. Gosto de repescar da estante livros já lidos, principalmente quando desejo fazer pausa daquilo que me comprometi fazer na vida. “Quase como por acaso”, são chamados de novo à experimentação, a um novo teste, no embate daquilo que sou com aquilo que cada um deles me pode ainda dar. Ontem descobri ‑ redescobri, melhor dizendo, Mitos e Símbolos na Arte e Civilização Indianas (Lisboa, Assírio & Alvim, 1997), uma compilação de conferências proferidas em 1942 por Heinrich Zimmer (1890-1943). Recordo-me do quanto foi importante para me situar corretamente num entendimento das questões relacionadas com a filosofia oriental. Na sua releitura, ontem e hoje, aferi se o referencial, que durante estes anos tenho seguido nestes temas, ainda é coerente com o seu pensamento. Senti-me a reler um mapa mental antigo… Neste mapa, as curvas de nível são a poética da cultura e da arte orientais, caminhos por onde se pode ter ainda acesso às praças que fui edificando.
Em cima do mesmo piano está uma escultura de Jorge Vieira (1922-1998), pesada do cobre que a configura. A sombra que a forma projeta, empurrada pela lisura firme da luz dos leds, contém a mesma riqueza pictórica da pequena peça, sendo tão expressiva quanto a obra. O que representa pouco importa de tão genuína ser a forma, podendo-se identificar seres de qualquer espécie. Têm dos vegetais e dos insetos a elegância da leveza ao ar, a fluidez de uma cascata ou a rotundidade das pedras trazidas pela água, dos humanos um incandescente erotismo. Pode invocar um trajeto de glorioso amor, uma qualquer vitória revolucionária, veleiro de dois mastros ao acostar ao destino.
Há momentos assim, plenos, sobretudo ligados à arte. Aqueles que se constituem de música são os mais eficazes. Na vida quotidiana ganham-se dificilmente, mas perdem-se muitíssimos mais no limbo das hipóteses menosprezadas. Desses poucos momentos que nos chegam, alguns existem durante o sono, no sonhado e, frequentemente, não são reconhecidos. Outros nos diálogos, nas leituras, no sonho dos livros, das escritas e das ideias. Estes momentos são salvíticos e sempre transcendentes. Daí haver quem acredite serem obra de divindades. Mas são apenas Arte manifesta e a particularidade do que a qualifica como tal.
Dois retratos angulam-se num dos cantos da sala da Ruth, um formado pela memória icónica dos despojos na obra de Costa Pinheiro (1932), outro pela intensidade da ingenuidade que transparece dos rostos. Reconhecer o outro pelo hábito é recusar de certa forma a profundidade do ser. Apresenta-se pois como ofício indireto do retratar, um equívoco entre a paisagem, a memória e o carisma. Institui-se mais pelo desígnio descritivo do que pela essencialidade de ser criatura. Ivo reconstitui-se, quase perdido de tão ingénuo, na sua autorrepresentação. Oferece-se assustado por quem o olha. Abdica da postura empática, renunciando aos prováveis diálogos que atravessarão a representação do seu rosto. Estranho o drama de se retratar recusando o embate da comunicação elaborada. A cor ilumina-o centralmente. O olhar retrai-se. Um retrato que foge sem se retirar. De outra forma, diferente da utilizada por Costa Pinheiro, apenas retraindo-se até ao não mais saber de si.
Uma outra leitura de férias foi um pequeno e completo The Weather Hand Book. Escrito por Alen Watts (Shrewsbury, Weatherline Books, 1994), permite-nos organizar o nosso raciocínio frente ao céu e perceber o que preconizam as formas, as cores e os movimentos do ar, quando remetido para o céu e para as nuvens. Os indícios são, provavelmente, os mais fortes argumentos para se tomarem decisões acertadas. É bom poder perceber se amanhã vai estar estio ou se de madrugada vai haver borrasca. É bom e dá segurança, aquela que dantes a cultura tradicional tinha e que permitia a confiança das trocas sem colonialismos.
O Nuno Calvet (1932) dá-nos a maioridade estética através duma prova fotográfica. O que parece improvável é realçado. É como deixar de ver figuras imaginárias nas nuvens e passar a olhá-las objetivamente, exatamente aquilo que são. É descobrir o fascínio estético sem efabulações nem fantasias. Mas deixando a permissão para todas as possibilidades de autenticação icónica.
Pela observação dos indícios, quando estamos demasiado perto, não nos podemos aperceber que aí vem uma grande tempestade. Como The Weather Hand Book, os períodos de paragem do trabalho são fundamentais para perceber o todo, onde e como nos integramos.

Do mesmo modo que na Sala de Ruth, a colecionadora de arte que expõe um conjunto de trinta obras na Casa das Artes de Tavira, uma fantasia-fundamento de deambulação estival pela contemplação estética das artes visuais. “Quase como por acaso” a Sala de Ruth abre as suas portas como uma opção redentora de muitos conceitos.
Dora Iva Rita

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